31.12.09

A menina que não sabia mentir

A menina admitia que não sabia mentir. Até tentava, mas era sempre surpreendida pela correnteza que saia da sua boca e levava a verdade ao ouvido do outro. Acho que é como quando a gente era criança e ia brincar de esconde-esconde. Lembra que ela, a menina, quando se escondia, e alguém estava a procurá-la, e chegava bem próximo, lembra como ela gritava? Era engraçado, todo mundo ria da menina que não sabia mentir.

Ofegante. Procurava conter a respiração com as mãos, juntinhas, formando uma concha (talvez quisesse ouvir o barulho do mar). Conseguia ouvir até o seu coração (Então era verdade que, sozinho e no silêncio, a gente ouve o coração?). E quando chegavam perto, mesmo sem vê-la, ela gritava. Talvez tivesse algum distúrbio mental.

E é por isso que ela, a menina, e eu, achamos que a gente sempre carrega coisas de quando éramos crianças: a forma de amarrar o cadarço, o olhar furtivo ao bolo de chocolate que tá lá na janela, ou o olhar frustrado quando recebia reclamações por ter mexido na caixa de costuras da mãe. E não é verdade? Mas agora, só o momento é diferente, embora ela sempre use as mesmas ferramentas.

do último II

O último tranforma, fazendo com que ele tome forma de ponto final.
Transforma o céu, o coração, e até mesmo as flores de plástico.
Porque no último, senhores, até o motorista ranzinza consegue e sabe dar uma boa gargalhada.

do último I

A menina, a essa altura do campeonato, e depois de tantos planos, e agora desfazendo-se de todos, vê que há uma falha. Sabe as descobertas que ela gosta de fazer (a menina)? Pois é, senhores, mais uma descoberta.
Ela agora abre a janela e respira. Não quer chorar no último.

30.12.09

Sobre o Ano Novo e a camisa

Tá vendo a gente? Tão assim, tão respirando esperança! É porque a gente pensa que quando os 365 acabam, acabam também junto com eles os problemas, e as fracas forças, e as caladas vozes, e as flores. Mas não vê que isso é verdade? É verdade! Acaba tudo, num tocar de cílios, e nem dá tempo respirar, e a gente já é ano novo, e a gente já sabe amar de novo, e a gente já é melhor. E a gente já consegue ver aquela roupa velha, que tava tão amarrotada de lágrima e tão rasgada como a alma, agora ela é lavada e remendada!

A mãe diz que roupa velha não remenda: o pedaço novo não combina com o que restou, é visualmente feio. E a camisa velha ela coloca no chão, lá na porta que dá acesso ao nosso quintal. Porque a camisa, senhores, a camisa não presta. Mas aí é que eu acho que a camisa é útil! E sabe o por que, colega? A camisa deixa de vestir corpo, onde era moldada, e agora é pano de chão e muda a sua forma toda vez que a mãe, quando volta do quintal porque tá lavando roupa, volta pra cozinha e lança tempero em panelas. Por que no chão, e precisando somente dele, e já idosa, e já rasgada, e já enrugada, recebe nova função. A camisa. Ela agora impede, já de tão acostumada, que a gente quando chega molhado do banho de chuva, saia molhando a casa de água e de lágrima do escorregão.