29.5.10

Sabe Glorinha,

Só hoje eu vim entender como a gente se machuca com espinhos mesmo sem conseguir entender a delicadeza e a ferocidade que uma rosa pode conter em si. Só hoje eu percebi que a gente quando machuca o outro, machuca antes de tudo o que temos de melhor em nós. Por que somos feitos de bem e mal. E o mal aparece quando, por descuido, deixo a porta aberta e entram folhas de notícias velhas, folhas de outono, folhas de outras estações, que já não existem mais - e quem sabe nunca existiram. O mal surge quando eu, cansada de ter que olhar pro mundo e pra sua maldade, tento achar algo belo dentro de mim. E o que eu encontro é só uma ponte que une a mim e as princesas dos contos de fadas, mas que tem uma falha. Bem no meio da ponte há um buraco, Glorinha. E eu não acredito em fadas.

Então é aí que qualquer voz, conhecida, sussurrante, distante, me acorda, me abraça e me revela que os jacarés que pulavam pra tentar me engolir são as lagartixas que moram no teto do quarto escuro, e a ponte com falhas é só a mão que eu encolhi quando naquele dia alguém sorriu pra mim. Por que, Glorinha, eu sei que o mal a gente vê em todo canto, mas o bem só pode existir nisto: a mão dele segurando a minha e a impedindo que fique presa aos medos. E o arrepio que isso me dá é tão leve, que os dedos dele conseguem fazer brotar em cada um dos meus poros uma flor.

25.5.10

Carta V (sobre o silêncio)

Querido Orlando, 

Hoje eu andei as ruas todas em silêncio, tentando fazer silêncio pelo lado de fora. Quando não quero que os meus pensamentos acordem as pessoas grandes do mundo, prefiro escrever uma carta sem muito ruído.

Ah, Orlando, vim pelas ruas lhe escrevendo cartas. Dois rapazes riram das roupas de um homem. Quis escrever cartas a esse homem também, mas dois passos eram ainda mais longe que Paris! Queria dizer a ele que não se sentisse desconfortável no mundo, tudo bem a sua blusa ser assim. O homem baixou a cabeça como se o mundo fosse lá embaixo, junto das plantinhas que insistentemente nascem nas calçadas feitas de cimento. Quis dizer que a blusa colorida e distraída brincava de voar no varal, acenando alegre às formiguinhas que atravessavam uma ponte improvisada entre uma calçada e outra. Quis dizer isso a ele, quis muito, mas não disse, é claro. Há tantas coisas que não dizemos a um desconhecido... Talvez, ainda mais, muito mais, aos conhecidos que estão separados de nós além da distância entre eu, o homem e Paris. Por que muitas vezes a distância que existe entre nós é só uma corda, na brincadeira de cabo-de-guerra. E ninguém se rende, Orlando. Ninguém. E se ninguém se rende, as palavras fogem. 

Por isso lhe escrevo, para que não se esqueça de nosso mundo quentinho, das palavrinhas miúdas que carregamos nos bolsos, e dos silêncios - mais insistentes que as plantinhas que nascem no asfalto - que transbordam nossa boca de risadas. Por hoje, fiquei com o começo desta carta e o silêncio que ainda permancesse entre os conhecidos. Por hoje, querido Orlando, por hoje, foi só.

24.5.10

Glorinha-doce

Quando Glorinha era pequena e só podia espiar o mundo pelas grades do portão, via sempre um velhinho passando na rua e gritando: Olha o aaaaaaaaaaaaalgodão-dôce!
Um dia a Glorinha resolveu sair e entrar na fila das crianças que também esperavam pelo algodão. Ficou esperando o velhinho transformar acúcar em nuvens, acúcar em mágica, em carinhos... Achou que o velhinho era um empregado de Deus pra fazer nuvem docinha aqui na Terra.
Quando ficou pronto mal podia acreditar! Pegou o algodão e sentiu-se tão perto das nuvens que achou que estava caminhando no céu.
Ela já ia longe quando o velhinho gritou: Ô Gloriiiiiiiiiinha, mas e o dinheiro!?
Glorinha virou e respondeu: Não, seu moço! Não precisa de dinheiro não! Só o algodão-doce já tá ótimo, já tá bom demais!
O velhinho deu risada e respondeu: É mesmo né, Glorinha? Só o algodão-doce já tá ótimo, já tá bom demais!

20.5.10

Pensando com meus botões

Estive pensando: A gente nasce e morre, um filme começa e termina (com final feliz), as coisas se principiam e se findam. As coisas se esgotam. Tudo que a gente vê tem tempo, duração, limite. E deve haver uma fonte saciável, mas limitada, no que se diz respeito as nossas ideias. E quando chega esse fim, a gente percebe que o poço não era fundo suficiente, que a linha foi pouca...
Mas não seria o fim, um novo começo?
Não seria a linha de chegada uma nova linha de partida?
O outro lado do rio não é o começo de uma nova terra?
Vida e morte.
A água acabou. A pipa voou.
Só não achei fim ainda pra o céu e pra o amor.

18.5.10

do Sol

Se é tua primeira noite, aquieta-te e não te preocupes, amor!
O sol nunca deixa a gente na mão.
Se ele desaparece e precisa dar calor ao outro lado desse mundo,
Manda que a lua venha e espalhe pelo menos luz
E traga pelo menos paz.

16.5.10

O livro de capa dourada

Querido Orlando,

Eu sei, nessa vida a gente está sujeito a tudo. Se estivermos no ar, podemos cair. Se no mar, o risco é de afundar. Mas como é que é possível o mundo desabar mesmo à nossa frente, assim, sem aviso? As coisas acontecem sem aviso prévio, sem dicas, sem motivos. O chão foge, e a gente vai caindo na tal desilusão. E nessa dimensão nossos olhos estão bem abertos, vendo realidade, sentido o real cheiro das coisas, tateando tudo como é. Pisando em pedras e sabendo que aquilo são pedras, e não flores.

Um gesto de carinho numa rosa pode nos machucar. É bonita a rosa? É. Mas a beleza dela não impede que seus espinhos nos machuquem. É linda a vida? Ora! Mas a corrida é dura, Orlando. Não dá pra se viver assim, vadio como o vento. Não dá pra se envolver com ele, dançar com ele, adquirir forma de vento e acompanhá-lo na viagem aos quatro cantos do mundo. A corrida segue. E então, cadê a música da vitória? Cadê a faixa de chegada? Cadê os aplausos? Cadê o troféu? O buquê de flores?

Em meio as turbulências é que te procuro. Te falo do céu, do mar, do passarinho que fugiu da gaiola, da menina correndo lá fora. Mas tu bem sabes que o que eu procuro em ti é paz. A paz que tu me dás quando chegas na porta da minha casa, no finzinho da noite, acompanhado das estrelas, da lua e da multidão das tuas histórias. Abres o livro de capa dourada, e eu me encosto no teu ombro úmido do orvalho da noite, fecho os olhos, e a história começa. E nem Branca de Neve, nem a Bela Adormecida foram mais felizes do que eu sou naquele momento.

5.5.10

guarda-chuva amarelo

Querido Orlando,

Hoje senti os teus olhos em mim. Me observaram durante um longo tempo. E por um tempo tive tanto medo de abrir os olhos e sentir os teus pousando sobre os meus, encontrando-os, penetrando-os, navegando-os, que nem me dei conta de que já estava conversando contigo, andando contigo, dividindo contigo o meu guarda-chuva amarelo. Tive medo de perder os meus dentro dos teus. Me perder em ti pra me encontrar enfim. Então virei e vi a cortina da janela balançando. E eu só queria dizer que a porta está aberta. Mas se quiser mesmo pular a janela, fica à vontade.

Da janela dá pra gente ver o sol nascendo, se pondo, as crianças correndo lá fora, brincando de gira-gira. Lá fora, a menina andando em círculos nem percebe o quanto cresceu. Volta sempre pra o mesmo lugar, mas já não é a mesma. Nunca sai do prumo, sempre andando em círculos, seguindo o ponteiro do relógio, correndo com e não contra o tempo.

Naquele momento percebi que o tempo não pode fazer muita coisa com a gente. Se todas as coisas se acabam porque o tempo é mau e não deixa que elas continuem, há uma coisa que o tempo não detém, Orlando. Palavras são à prova de tempo. Então, guardei aquela carta por dentro dos meus olhos para quando o tempo mudar, eu não esquecer você. Pra quando o tempo mudar, e o céu ameaçar explodir de tão cinza que está, você, como sempre, não me responder palavras, não me escrever palavras, mas quando o sol for sumindo, você sorrir e se encolher comigo embaixo do meu guarda-chuva amarelo.

2.5.10

sobre o amor

O amor é uma enorme colcha de retalhos coloridos que nos aquece do frio de dentro.
E o beijo é só a costura que os lábios dão e unem esses retalhos.
Se não há costura, são apenas retalhos.

1.5.10

Eu sobre mim II

Conheci o Orlando um dia desses no ônibus.
Ele teve pena de mim quando me viu falando sozinha.
Então, sentou do meu lado e começou a conversar. E até hoje eu escrevo cartas pra o Orlando.