24.6.10

Conto de humanos

Era uma vez um leitor curioso pela história de um livro. Era uma vez um livro curioso pelos olhos daquele leitor. Era uma vez a história de um. Era uma vez a história de outro. Era pra ser uma história de dois. Mas porque ninguém se rendeu, não houve história lida. Nem leitor satisfeito. Então o livro ficou de lado, esperando qualquer olhar que se rendesse e o abrisse, que o despisse e o percorresse e ficasse satisfeito com a sua história. Mas o leitor cansou de tudo isso, e pensou em virar escritor.

Era uma vez um homem que já não era mais leitor, e que ainda não era escritor: era apenas um homem. Era uma vez um papel, uma caneta e dois personagens que ainda não haviam sido criados. Um dia o homem quis esquecer quem era. Quis esquecer o dia em que nasceu, de que mãe havia saído, qual tinha sido seu primeiro tombo e de quantas feridas já havia se recuperado. Repare bem: a casquinha é a tampa do abismo que é a ferida. Então o homem, que até então não era mais leitor e que iria se tornar narrador, achou papel e caneta numa gaveta qualquer, onde guardava coisas que não lhes eram necessárias. Por que guardar coisas velhas? Ora! A gente guarda tanta coisa que deveria estar tão longe.

Era uma vez um narrador que criou dois personagens. Era uma vez dois personagens com vidas diferentes, histórias diferentes, e principalmente olhos diferentes. Um tinha uns olhos puxados assim pro lado de dentro, que chorava pra dentro, e que também olhava além corpo. Chegava até o lado de dentro do outro. Já o outro tinha olhos. Apenas olhos. E porque os pés dos personagens andavam por lugares diferentes, eles nunca poderiam tombar um com o outro.

Era uma vez uma história forçada. Dois contra um. O narrador insistindo no encontro, e dois personagens que nunca se encontrariam. E puxaram de um lado, o narrador puxou do outro. E puxaram, puxaram, puxaram, até que as linhas do papel se quebraram. E houve uma grande explosão de tinta de caneta. Tinta no teto, nas paredes, na mesa do narrador... Então a história que nunca tinha chance de acontecer escorregou pelas mãos do ex-leitor-homem-narrador e foi pingando, pingando. E como uma história podia ir pingando assim nos dedos e regando, sem intenção, uma terra? Querendo fazer brotar palavra, frase, vírgula, ponto final.
Pula linha.

Travesão.

- Desisto.
A palavra ecoou por muito tempo no quarto do que era um leitor, que virou apenas homem, se tornou narrador, e agora era só um. Um. Só um espaço vazio. Só uma entrelinha implícita.
Mas tentou tomar forma de narrador novamente. E o narrador, ao consertar o espaço, puxar a linha do tempo e dar voz aos personagens, não percebeu que eram só uma bolinha de papel amassado.
Dentro da bolinha de papel amassado, jogada no cesto, dois personagens corriam campos inteiros, corriam os prados e planícies de mãos dadas. Contavam estrelas deitados sobre a grama, passavam o dedo no céu e - engraçado - havia uma poerinha de lua nos seus dedos.
 
Era uma vez um que havia feito uma história de dois. Então, despiu-se da roupa de narrador e decidiu que precisava ser apenas humano. Que poderia pegar todas as palavras que ficaram no teto, na mesa, embaixo do pé e escrever uma carta pra refazer uma história. Uma história de um e de outro que se amavam. Uma história de humanos.
Era uma vez...
 
P.S: Queridos, se essa já é a milésima vez que você lê, lê, lê, e não entende nada, não se preocupe: a culpa é minha. Me desculpem a confusão desses dias. Mas eu acredito que isso passa. Passa, passa. Passa porque até uva passa! :p

22.6.10

Glorinha-de-balanço


Desde que começou ir à escola, tentava aproveitar ao máximo cada minuto por lá. Por ser uma das mais novas da turma, sempre ficava por último na hora do balanço. E quase sempre era levada de volta pra sala antes de se balançar.

- Uaaaaaaaaaaaau! Ninguém no balanço! Eu não posso acreditar! 

Deu um grito imenso quando viu o balanço desocupado pela primeira vez. Nem conseguia conter-se de tão feliz; agora o balanço estava ali, só pra ela. Ela e o balanço.

- Isso é ótimo! Ninguém está pedindo pra eu andar logo. Iuuuuuuuuuuupi! 

Balançou, balançou. Chegou tão alto no balanço que jurou sentir o gosto do céu.
De súbito parou.

- Ops! Ou hoje é meu dia de sorte, ou não escutei o sino tocar, de novo.

20.6.10

Lembrei de você!


Eu precisava mostrar isso pra vocês.
É uma das coisas que eu acho mais linda numa pessoa: quando ela lê, vê, ou escuta alguma coisa e diz que lembrou de mim! Isso me deixa realmente encantada.

Uma conversa de MSN:
emanuelle diz: Ei, um carinha discursou la na igreja hoje, só lembrei de você!
Ele falou que ama girassóis.
Nem lembro o porque... aí ele falando lá de algumas características do girassol que eu já sabia, falou uma que eu não sabia: o girassol pode crescer três metros, véi!
na hora eu falei: isso é simplesmente ASSUTADOR.
(...)
emanuelle diz: Eu, na hora que ele disso isso, lembrei de tu quando disse que queria um, né?
Imaginei um num jarro do seu quarto, maior que você, e você começando a conversar com a flor (bem típico seu esse comportameto).


Não é lindo, isso? Mesmo com essa indireta direta de que eu sou doida.

15.6.10

Carta VI

Senhor,

Já faz um tempo que eu queria te escrever uma cor. Depois de passar o passado, acho que eu mesma esqueci dos tons, das notas, das pausas. Esqueci de retomar a música. Ficou a fermata na pausa no ar. O silêncio depois da nota aguda.

Da primeira vez quem sugeriu, eu sei, eu sei, fui eu. Entenda bem, senhor: meus dedos não sabem tocar. E foi tentadora a sua ajuda. Mas você deixou a música de lado. Deixou de tocá-la para me. Era pra solfejar, senhor! Solfejar. Acompanhando o compasso, compasso binário. Um, dois. Um, dois. Nós dois na mesma sala. Eu na minha voz, você na sua. Mas a música se uniu através dos lábios, e a canção nesse dia foi cantada para dentro.

Da segunda vez quem sugeriu também fui eu, eu sei. Mas eu não entendia que na música os sentidos se invertem. Que os braços beijam. Os olhos sentem. Os lábios veem. E de repente você anuncia pausa de oito tempos! Pausa de oito tempos! Não era pra ser assim, senhor. Isso faz parte do improviso, senhor?

Depois veio de novo desamarrando as cinco linhas do pentagrama e as amarrando em minhas mãos. Insistindo agora que a música ficasse. Também é contraditória a música, senhor. Eu queria alcançar sol, mas você só aceitou ir até lá. Então as claves, as colcheias, as mínimas, e as semibreves foram escorregando, saindo da nossa música. Já não há mais tom, nota, nem pausa. Acabou a música no instante em apareceu a barra dupla. Eu e você separados. Foi pra lá e levou parte de mi. Ficou apenas dó. A nota insistente que ainda soa. Dó.

11.6.10

Sobre amores, dragões, girassóis, eu e você II

(...) Quando alguém vai embora sem explicação - por não querer ou não poder explicar - é verdade que a saudade usa uma faca muito afiada e nos divide em quatro fatias. O outro mentiu, enganou, machucou, lhe colocou num grande vale desconhecido mesmo você insistentemente avisando que tinha medo de dragões. Mas esse tal alguém não faz parte do seu mundo ideal. Esse alguém ainda insiste em manter a armadura por que prefere esconder os seus defeitos a deixar que alguém simplesmente o ame, além das suas falhas. Talvez esse alguém precise saber sobre o que você pensa. E ele vai embora, some, mas não nos leva junto. Então a gente fica e faz um jardim, qualquer coisa para ocupar o tempo, um banco de almofadas coloridas, e pede aos passarinhos não sujarem ali porque aquele é o banco do nosso amor, do nosso grande amigo. Para que ele saiba que, em qualquer tempo, em qualquer lugar, daqui a não sei quantos anos, ele pode simplesmente voltar, sem mais explicações, para olhar o céu de mãos dadas. Por que você aprendeu sobre o amor. E o amor estará acima de qualquer falha, acima de qualquer mentira. O amor perdoará.

Quando os dedos se entrelaçarem de novo, os nossos olhos enxergarão o abismo que é o olhar do outro, e a gente pensa que vai cair nesse abismo, e tenta se agarrar a qualquer pedra, mas só consegue alcançar uma flor. E a flor se despetala toda, fazendo com que você mergulhe de cabeça - mas não se machuque- por que você está caindo no coração do outro, e tudo o que existe nele é amor. Nesse dia, você e seu amor irão construir uma linda casinha e guardarão ali nas paredes todas as fotografias desde o dia em que vocês tombaram um com o outro, até o dia em que a morte os separará.

Eu não sei o que vai ser depois disso. Eu só acredito no amor. E o meu mundo ideal poderá sim existir em algum momento da minha vida se eu conseguir fazer com que os dragões que eu convivi enquanto o outro foi embora virem gentis colegas de sonhos.

10.6.10

Sobre amores, dragões, girassois, eu e você

Sabe, acho que ninguém vai entender. E se entender, não vai aprovar. Existe no mundo uma lei que diz: se você me tratar bem, me der carinho e cuidar de mim, eu vou amar você. E aí eu tenho que trocar um punhado de boas ações por amor. A gente vê isso desde criança, quando só recebe o presente quando se comporta bem. A gente cresce com isso de só dar ao outro o que ele já deu pra nós. Parece que ninguém é amado só pelo que é, só por existir. Sempre tem que haver justificativa, motivo nobre, algo que lhe convença de que o outro merece um pouco do seu afeto. É um comércio onde nem sempre quem dá é garantido receber. A história não tem fim nunca, sempre se repete: enquanto você der, eu posso lhe retribuir.

Depois de desafundar os pés de uma importante decepção, eu decretei pra mim mesma que um mundo ideial pode sim existir. Nem que ele exista apenas nos meus sonhos, nas minhas ideias. Não estou falando de um mundo cor-de-rosa, onde todas as pessoas são perfeitas. No meu mundo ideal as pessoas amam as outras simplesmente porque amar somente a si mesmas pode levá-las a um pronfundo e obscuro complexo de egoísmo. E se isso acontece, todas as coisas bonitas do mundo - o nascer do sol, a flor desabrochando, ou o nascimento de um passarinho - deixam de existir e no espelho só existe você e seu ego inútil. Mas se você se dispõe a cuidar de alguém, a amar sem querer em troca, a plantar um girassól e vê-lo crescer, a sua enorme armadura de ferro e a venda nos olhos não podem mais lhe impedir de encontrar alguém e dar-lhe um abraço. Você vai ver que os seus braços não foram feitos pra agarrar o mundo, e sim, simplesmente foram feitos na medida do abraço. (...)

6.6.10

Sobre a auto-costura

Quando a gente se dispõe - sempre por precisão e nunca por estética - a reaver e recosturar determinadas coisas do coração, deparamo-nos com a auto-costura. A auto-costura é necessária quando os dedos já não mais podem se enlaçar um a outro, quando o coração já não pode encostar no outro, quando o ponteiro bate no cinco, e fica no cinco, sempre no cinco, o ponteiro no cinco... Então, primeiro, é preciso alinhavar o tempo. Achar a ponta mais longe e desfazer os embaraços, partindo do fim para o começo. Cerzir as risadas, as poucas palavras, e até mesmo os silêncios estampados de flores que agora estão tão murchas. Depois, é preciso desatar as linhas. As linhas que escreveram no papel de pão, na ponta da mesa, no degrau na escada. O bilhete... E providenciar botões pras casas abertas. E não importa se seu coração vai ficar mais parecido com uma roupa de carnaval. Tudo bem se o seu sorriso vai ser feito de linha de costura. Então você fecha seu ateliê de auto-costura e espera qualquer outro amor pra brincarem de novo no jardim. Mesmo sabendo que seu vestido pode rasgar na cerca quando forem atrás de borboletas. Auto-costura é pra isso mesmo.

3.6.10

Da despedida

Ontem eu saí de casa sem imaginar quem eu econtraria. E fechei a porta atrás de mim, sem ouvir o conselho da chave. E caminhei pelas ruas de pedra, sem escutar o canto dos passos. E entrei no ônibus sem escutar o aviso do vento. E sentei, sem perceber que aquela janela é o quadrado mundo que impede o navegante de ir além-mar. Fosse redondo eu poderia entrelaçar os meus dedos nos teus ou, quem sabe, buscar o horizonte onde divisam teus olhos. Mas foi quando você baixou a cabeça quando eu te olhei, que percebi os teus pensamentos caindo da cabeça e empilhando-se em cima de uma flor. Mas não a sufocaram. Por que teus pensamentos, de tão leves, foram levados pelo vento e eu senti o cheiro de luz e amor que eles tinham.

Ontem eu saí de casa sem imaginar o que aconteceria. E fechei a porta atrás de mim, sem ouvir as tuas últimas palavras. E caminhei pelas ruas de lágrimas, sem escutar o choro da alma. E pousei nos teus olhos sem entender que teu interior de lata é frágil. E sem perceber, e sem tempo de me defender, veio um vento tão forte que queria levar tudo embora. Me esforcei por segurar as últimas histórias que ainda estavam em meu colo. Mas você disse que flores nascem e morrem. E que histórias tem fim porque se passarmos toda a vida contando as histórias dos livros, não vivemos a nossa.

E o mundo nem estava em tempestades quando eu te procurei. Por que melhor que ter alguém pra ter acalmar na turbulência, é ter alguém pra te receber na calmaria. E eu não te procurei pra trazer guerra. O que eu trouxe junto com as minhas lágrimas foi amor. E o amor é fraco, meu boneco de lata; o amor é fraco e ele já se entregou. E se existe alguma guerra é essa: meus dedos sobre a sua camada fria de lata, e você se afastando, sem deixar que eu perceba a gota escorrendo na sua face e pingando no queixo. A única coisa que você fez foi me ajudar, então, como eu poderia ser ingrata ao ponto de te machucar? Eu sou carne e osso. Você, lata e poesia.

E agora, encosto o meu dedo em sua pele, mas ela não afunda. Não é possível. Desabotôo a sua camisa e deito a minha cabeça em seu peito, meu homem de ferro. Eu queria chorar, mas posso enferrujá-lo. Então, como viveria em paz sem a sua armadura? Sem nada entender, você se vira e vai embora. E só então eu percebo: a sua armadura é furada, meu amor. Nas centenas de furos sobre a lata, vai aguando todas as plantinhas ao seu redor. Você é, na verdade, um lindo homem regador.