21.7.10

Glorinha, me diz,

quando a gente não aguenta mais, o que acontece? A gente explode? Ou simplesmente flutua de tão cheio que está? Sim, porque tudo no mundo é limitado. Não vê que nosso corpo tem pele é pra isso mesmo? Pra conter o sangue que corre nas veias, pra dizer pro coração que ele só pode chegar até ali, e ai da gente se ele quiser sair do lugar!

Eu não queria entender, Glorinha, a lógica dos pássaros que, quando saem da gaiola, não voltam nunca. Eu só não queria entender porque eu tinha medo. Tinha medo do passarinho voltar a qualquer hora e dizer que saiu porque simplesmente uma gaiola não é o maior limite pra se viver. Se há um céu tão grande, onde cabe Sol, Lua, estrelas e um arco-íris com tantas cores, porque é que a gente insiste em ficar nesse chão cinza e frio, onde, se não fosse a terra e as sementes, seria tudo tão triste, tão cinza, tão morto...? 

O meu passarinho, apesar de longe, e talvez exatamente por isso, me ensinou: quando a dor é muito grande, ela extrapola o intagível e atinge músculos e tendões para só depois evaporar pelos poros. Depois que isso acontecer, e você só estiver bem cheio de vazio, encha o peito com mais de 3 mil suspiros, quando estiver bem levinho, solte as amarra e flutue.

19.7.10

Os guarda-chuvas

Não havia como esquecer: são dessas cenas que nunca escorregam aos calabouços do tempo; era a chuva perfurando a tarde e, naquele homem, abrindo fenda nos ombros; ele não tinha guarda-chuva e, parece, nem vontade de se molhar. Diante da poça de água, tentava arranjar qualquer modo de atravessá-la sem que se molhasse. Sabia muito bem, mais do que ninguém, que sapatos molhados trazem um peso a mais.

Não há como esquecer: são desses encontros que nunca evaporam junto com a chuva; era o homem fugindo do peso das coisas desnecessárias e, naquela tarde, deparando-se com a ajuda de uma desconhecida; ela não tinha intenções e, parece, nem vontade de tê-las. Mas as intenções são desses barquinhos de papel que, querendo ou não, são carregados pela chuva em direção de algum bueiro, a menos que um menino o salve dessa tragédia e o chame de meu.

Seu Galdino relutava em atravessar a poça, quando uma moça muito bonita e séria estendeu para ele o seu guarda-chuva. Desses guarda-chuvas que são estendidos em forma de ponte para estreitar os abismos que há entre um ombro e outro. Depois de entender as boas intenções da adorável Dona Flor, ele nunca mais teve que se preocupar com os seus sapatos molhados que o traziam um peso a mais. E ainda que molhasse, o que importava? Sua cabeça estava à salvo das gotas de chuva, porque sempre que chovia havia ao seu lado uma senhora muito séria empunhando toda a sua braveza nas gentilezas de um guarda-chuva.

14.7.10

A tempestade

Foi num dia em que o céu estava coberto pelas nuvens violentas, e ela teve muito medo do mundo. O mundo que se empunha sério, com toda a sua matemática, toda a sua lógica, todos os seus conceitos e regras. O mundo que não admitia mudanças. É assim que é, e terá que ser. Raquel encolheu-se no canto do seu quarto e procurou pelas prateleiras algo que não via há tempo. Não era simplesmente algo que ocupava um lugar ali, era algo que lhe trazia segurança, uma espécie de refúgio. Pousou os olhos nas prateleiras agora preenchidas por livros que na maioria das vezes só lhe davam breves momentos de euforia. E que, ao invés de estreitar os abismos que existia entre ela e seus sonhos, só abriam uma fenda muito mais profunda. Tão profunda que já não se podia mais ver o fim.

Perdida entre devaneios, mergulhou nas águas de agosto de um ano muito remoto. Era seu aniversário, e pela primeira vez quis escolher o seu presente. Não que o tivesse em mente. Queria encontrar um brinquedo que a escolhesse. Já havia lido em muitos livros (hábito que cultivara desde a infância) histórias incríveis de bonecos que falavam, andavam, sentiam como gente. Não acreditava nesse mundo encantado, mas sabia que no seu mundo ideial tudo poderia acontecer. Entrou numa loja. Foi então que seus olhos encontraram os olhos de um boneco de lata. O boneco estava muito escondido, e ela logo percebeu que ele também guardava muitos medos no seu interior de lata. Então eles se escolheram. O boneco passou a ser da menina, da mesma forma que ele a tinha como sua.

E por se pertencerem, não existia entre os dois nenhum tipo de egoísmo, ciúmes, ou essas coisas ruins que, quando há uma fresta, impedem que o amor encontre um lugar entre dois. Porque o amor só precisa disso: dois corações encostados um no outro, dispostos a sentirem e compartilharem tudo o que há dentro deles. Desde então, Raquel nunca mais se sentiu só, porque sabia que quando chegasse cansada da escola, de tanto correr e de tanto ser caçoada, poderia contar com seu boneco de lata, que a esperava com um grande sorriso metálico na sua prateleira. Encontrou refúgio nele para todos os momentos, inclusive nos dias em que o céu estava coberto por nuvens violentas, e ela tinha muito medo do mundo. Desde que encontrou seu homem de ferro, não teve mais medo de nada. Nem quando trovejou ou os raios faiscaram ferozes. Nem quando o céu fez menção de desabar. Depois desse dia, havia sempre um boneco muito reluzente, tão reluzente quando um raio vindo do céu, empunhando o seu carinho na sutileza de um abraço frio.

necessidade


Abraçar é preciso.

13.7.10

da bailarina

Não precisa ficar triste quando suas sapatilhas não mais entrarem no seus pés. Se a música ainda tocar, serás sempre uma bailarina. Enquanto a vontade de voar estiver em cada gesto da tua dança involuntária, ainda vais poder sentir os olhos dos expectadores atentos aos movimentos, a cada gesto. A mão erguida por cima da cabeça, e em seguida, o salto.

Você é só uma criança crescida, querida. Uma bailarina que dança no palco da vida. Enquando as palavras mágicas estiverem presentes no começo de cada nova dança, você ainda vai poder rodopiar, e rodopiar, e rodopiar até que se trasnforme em uma linda bailarina de caixinha de música.

10.7.10

sementes de girassól

Querido Orlando,

Como é que a gente pode perder as coisas que nunca teve? E deixar que o tempo as leve pra longe da gente até que nossos olhos não as alcance mais? Quando o tempo leva, não há ponte que una dois olhares abandonados. Não há agulha nem linha do tempo que reate dois corações afastados por motivos que não são importantes. Será que é assim que as coisas vão embora? Ou talvez nem cheguem?

Mas hoje eu abri a janela e mal consegui acreditar! Inspirei um milhão de cores e expirei uma explosão de flores, escapando afoitas do meu peito. Abri a janela e vi: o meu girassól brotou! Por que há isso de extraordinário no mundo, Orlando. Quando alguém rejeita os seus cuidados, por algum motivo muito importante pra ele ou por motivo nenhum, você pode plantar um girassól. E pode regá-lo, vê-lo crescer, pode falar com ele, amá-lo... Mas você sabe bem que seu girassól nunca vai criar pernas e ir embora de você. O seu girassól vê o amor que você tem por ele quando o banha exageradamente, e quando o olha com os olhos de uma mãe. Olhei pro meu girassól e vi que tudo é tão bonito, tudo tão… inacreditavelmente perfeito e encaixado que nem a maldade dos homens, de seis bilhões de homenzinhos pequeninhos, pode ser maior do que o conjunto das estrelas erradias, ainda mais quando metade de cada homem também é amor…

Porque eu sei, Orlando, que somos feitos de bem e mal. E eu que achava que era a culpada disso tudo, que tinha feito ou deixado de fazer algo e por isso o outro foi embora, eu que nem acreditava mais em mim... Você só quis me mostrar que eu podia ser maior, não do que os outros, mas que eu podia ser maior que os meus medos ou até mesmo do lado mau que há em mim. Você me mostrou bem isso quando chegou sorrindo e me deu aquelas sementes de girassól.

4.7.10

Desabafo


Senhor,

Eu já estava no ônibus quando hesitei, quando desci no primeiro ponto que a agulha fez entre nós. Voltei correndo pra casa, subi as escadas em espiral, passei a chave na porta e juro que ouvi a nossa música tocando no rádio. Mais uma vez voltei pra casa, senhor. E encontrei-a arrasada.

A mesa ainda posta, as cadeiras separadas pelas migalhas de pão. As violetas murchas na janela, denunciando a falta de cuidados, ou até mesmo os exagerados, que o senhor teve com elas. Não lembra como ensinei? É preciso molhar os dedos, e deixar que a água vá pingando e umedecendo toda a terra. Minhas mãos na cintura. A camisa sobre a cama, à espera de um abraço. Alguma casa sem botão. Botão sem a casa. A casa. A casa. A casa? A casa vazia. Meu desespero através do espelho. A cortina descosturada no ponto que a agulha (essa que ensina a costurar as feridas, senhor) não deu.

A colcha de retalhos bordada de flores murchas. A meia sem o par. Um jarro na parede. O grito alto. Um porta-retrato no chão dividido em dois. O ponteiro no dez. Nós dois tentando correr atrás do tempo que a tesoura cortou em quatro pedaços. Meu desabafo em cada canto da parede. As mãos sobre o colo, em desespero. A porta fechando-se rancorosa.
Pode mesmo acabar assim um casamento, senhor?

3.7.10

da solidão

Não precisa ficar com medo. Quando o tempo se preparar para chover e o céu ameaçar explodir, eu vou brincar na chuva com você. E vou te abraçar tão forte, que esse sentimento de solidão irá se trasnformar em sete mil borboletas rodopiando na sua cabeça. Então você vai entender que quando alguém vai embora sem dar explicação é porque a história que ele iria te contar não tem fadas, nem bichos que falam, nem um pote de ouro no fim do arco-íris. E essa pessoa sabe que histórias que não tem mágica não te interessam. Te deixar sem ao menos dar um adeus talvez tenha sido a maneira mais bonita que o outro encontrou de te dizer que, de alguma forma, te ama.

sobre o sono

É quando fecho os olhos que vejo as estrelas
c
a
i
n
d
o
e predendo os meus cílios - um a um - servindo de botões para as minhas pálpebras.

1.7.10

sobre o abraço

O abraço é a forma que o outro encontra de te deter quando você está indo contra o vento.

p.s: Queridos, só aguentei até aqui. Pode até parecer pouco tempo, mas foi uma eternidade pra mim! Eis-me aqui novamente. Seja bem-vinda! :)