3.2.10

Os dispostos se atraem

O boneco de lata estava ali na prateleira há muito tempo. Tanto tempo passou que ficou velho. Teve a péssima idéia de contar os dias, as noites, os anos e, agora, não conseguia mais perder a conta. E aí ficava triste, muito triste por que tudo passava, menos uma pessoa qualquer que o tirasse daquele sufoco. Alguém que lhe desse um coração, pra assim ele poder virar gente. Ele adorava gente.
Gente fala. Gente canta. Gente come. Gente anda. Gente dirige. Gente é muito importante (Tinha gente até que é presidente.). Gente estuda, escreve poema, compõe canção. Gente ama. Briga. Vai embora. Volta. Se arrepende. Gente sente. Gente pensa cada coisa, ele pensava.
Como ele se sentia triste se não tinha coração? Ora, não duvide! Gente muitas vezes se engana.
 E lá ficava o boneco de lata.
Enferrujado.
Amassado.
Abandonado.
Esquecido.
Sem graça.

Entravam e saiam pessoas daquela loja procurando carrinhos de controle remoto, bonecas que falavam, skates, mas nunca procuravam o boneco de lata. Ninguém nunca olhava pra ele nem pra dizer "que bonitinho!", "olha mãe, eu quero um desses!", "tão simpático", ou essas coisas que pessoas que tem coração dizem quando ele amolece por algum motivo.
Não tinha jeito. Era o seu triste fim, enfim.

Mas por que será que esse boneco não queria uma coisa mais fácil? Um coração, boneco? Sei lá por que, ora. Nem tudo no mundo é explicável.
Mesmo sendo tão desprezado, o fato era que ele havia decidido: queria alguém que pudesse lhe dar um coração. E haveria de encontrar alguém que quisesse lhe dar, não é verdade? Não dá pra entender algo tão óbvio? O boneco precisava de um coração urgentemente pra despejar no coração desse alguém todo sentimento que havia guardado no seu vazio feito de lata. Mesmo quando passava alguns meses sendo ignorado, pensa que ele desistia? Que nada. Botou na cabeça que ia encontrar um coração e não era do tipo de boneco de lata que se deixa abater pelas dificuldades que aparecem sempre.

Dias e dias passaram até que acordou ouvindo certos passos que já pensou ter ouvido antes. Talvez num daqueles sonhos nas noites de chuva em que se encolhia todo pra que a água não pingasse no seu corpinho frágil de lata. Era uma menina. Sozinha, magrinha, sem graça. Mas ele viu nela o coração mais lindo e mais espaçoso e mais disposto a receber sentimentos do que qualquer um que haviam entrando por aquelas portas.
- É ela! - pensou ele fazendo pinta pra que o notasse.
Estava ali pra escolher seu presente de aniversário. A menina mergulhou os olhos nas prateleiras, vidrou nas bonecas, avançou o olhar pra aquela bailarina, virou, e bateu. Bateu com os olhos nos olhos do boneco. Vibraram. Nenhum outro brinquedo conseguia ser tão expressivo como o boneco de lata.
- Eu quero aquele, mamãe.
O boneco de lata sorriu. Ela segurou-o junto do peito e saiu da loja como se carregasse o seu troféu. E por onde ia, levava o boneco. E tudo o que acontecia, contava ao boneco. E o boneco achou lugar no seu coração. Ele não podia andar, comer, falar, ou essas coisas que Gente faz. Mas podia dormir no coração da menina e compartilhar os seus sentimentos com ela.

- É louca - comentavam suas colegas. - Como é que essa menina foi querer logo o mais feio?
Nem todo mundo sabe que o verbo querer fica muito melhor de dupla. Um querendo de lá e outro querendo de cá viram dois que se completam.
 E quando isso acontece- dois quereres ao mesmo tempo - os sinos sempre badalam, os olhos piscam feito estrelas, os corações batem mais forte, razões perdem completamente o sentido, tudo vira maravilha em volta, a vida fica quase tonta e o resto não importa.
Pena que tinha gente que não entendiam a relação entre o boneco e a menina. Gente procura explicação pra tudo, justificativa, motivo nobre, benefício, julgamento. Perde muito tempo analisando. Dá importância além da conta a coisa menos importante que o momento.
Gente pensa demais de vez em quando.
Tanto é que tem gente que até hoje não entende quando vê a menina sorrindo sozinha agarrada com seu boneco de lata, juntinhos e felizes, e pensam: Que engraçado.

5 comentários:

Polyana disse...

Cristã, Natalense, aspirante à UFRN e admiradora de bons blogs.
Adorei Roupas no Varal, você escreve muito bem. Te sigo Rute.


Polyana Sales

Yuri Padilha disse...

Pare de falar que eu escrevo bem e leia seus textos.


Putz, esse foi MUUUUITO bom.

Sensível demais. Ah, e a maneira que vc "desenhou" a situação e as reflexões. Puuuutz, FODA.

;***

Nuriko disse...

Mas é engraçado mesmo. É engraçado, é lindo, é maravilhoso.

Rodolpho Padovani disse...

Nem todos têm sensibilidade o bastante para entender. Adorei esse, quem disse que é preciso de coisas mais sofisticadas e caras para ser feliz?
A menina ensinou uma lição valiosa.

Bjs =)

Unknown disse...

Que doce.

O querer é tão gostoso quando é no plural.