Era uma vez um homem que já não era mais leitor, e que ainda não era escritor: era apenas um homem. Era uma vez um papel, uma caneta e dois personagens que ainda não haviam sido criados. Um dia o homem quis esquecer quem era. Quis esquecer o dia em que nasceu, de que mãe havia saído, qual tinha sido seu primeiro tombo e de quantas feridas já havia se recuperado. Repare bem: a casquinha é a tampa do abismo que é a ferida. Então o homem, que até então não era mais leitor e que iria se tornar narrador, achou papel e caneta numa gaveta qualquer, onde guardava coisas que não lhes eram necessárias. Por que guardar coisas velhas? Ora! A gente guarda tanta coisa que deveria estar tão longe.
Era uma vez um narrador que criou dois personagens. Era uma vez dois personagens com vidas diferentes, histórias diferentes, e principalmente olhos diferentes. Um tinha uns olhos puxados assim pro lado de dentro, que chorava pra dentro, e que também olhava além corpo. Chegava até o lado de dentro do outro. Já o outro tinha olhos. Apenas olhos. E porque os pés dos personagens andavam por lugares diferentes, eles nunca poderiam tombar um com o outro.
Era uma vez uma história forçada. Dois contra um. O narrador insistindo no encontro, e dois personagens que nunca se encontrariam. E puxaram de um lado, o narrador puxou do outro. E puxaram, puxaram, puxaram, até que as linhas do papel se quebraram. E houve uma grande explosão de tinta de caneta. Tinta no teto, nas paredes, na mesa do narrador... Então a história que nunca tinha chance de acontecer escorregou pelas mãos do ex-leitor-homem-narrador e foi pingando, pingando. E como uma história podia ir pingando assim nos dedos e regando, sem intenção, uma terra? Querendo fazer brotar palavra, frase, vírgula, ponto final.
Pula linha.
Travesão.
- Desisto.
A palavra ecoou por muito tempo no quarto do que era um leitor, que virou apenas homem, se tornou narrador, e agora era só um. Um. Só um espaço vazio. Só uma entrelinha implícita.
Mas tentou tomar forma de narrador novamente. E o narrador, ao consertar o espaço, puxar a linha do tempo e dar voz aos personagens, não percebeu que eram só uma bolinha de papel amassado.
Dentro da bolinha de papel amassado, jogada no cesto, dois personagens corriam campos inteiros, corriam os prados e planícies de mãos dadas. Contavam estrelas deitados sobre a grama, passavam o dedo no céu e - engraçado - havia uma poerinha de lua nos seus dedos.
Era uma vez um que havia feito uma história de dois. Então, despiu-se da roupa de narrador e decidiu que precisava ser apenas humano. Que poderia pegar todas as palavras que ficaram no teto, na mesa, embaixo do pé e escrever uma carta pra refazer uma história. Uma história de um e de outro que se amavam. Uma história de humanos.
Era uma vez...
P.S: Queridos, se essa já é a milésima vez que você lê, lê, lê, e não entende nada, não se preocupe: a culpa é minha. Me desculpem a confusão desses dias. Mas eu acredito que isso passa. Passa, passa. Passa porque até uva passa! :p