4.7.10

Desabafo


Senhor,

Eu já estava no ônibus quando hesitei, quando desci no primeiro ponto que a agulha fez entre nós. Voltei correndo pra casa, subi as escadas em espiral, passei a chave na porta e juro que ouvi a nossa música tocando no rádio. Mais uma vez voltei pra casa, senhor. E encontrei-a arrasada.

A mesa ainda posta, as cadeiras separadas pelas migalhas de pão. As violetas murchas na janela, denunciando a falta de cuidados, ou até mesmo os exagerados, que o senhor teve com elas. Não lembra como ensinei? É preciso molhar os dedos, e deixar que a água vá pingando e umedecendo toda a terra. Minhas mãos na cintura. A camisa sobre a cama, à espera de um abraço. Alguma casa sem botão. Botão sem a casa. A casa. A casa. A casa? A casa vazia. Meu desespero através do espelho. A cortina descosturada no ponto que a agulha (essa que ensina a costurar as feridas, senhor) não deu.

A colcha de retalhos bordada de flores murchas. A meia sem o par. Um jarro na parede. O grito alto. Um porta-retrato no chão dividido em dois. O ponteiro no dez. Nós dois tentando correr atrás do tempo que a tesoura cortou em quatro pedaços. Meu desabafo em cada canto da parede. As mãos sobre o colo, em desespero. A porta fechando-se rancorosa.
Pode mesmo acabar assim um casamento, senhor?

6 comentários:

Jaciara Macedo disse...

É sempre triste o fim das coisas. Ficam as lembranças dos supostos momentos felizes e no final isso é tudo que nos resta. Muito bonito o texto. beijos, coração (:

Anônimo disse...

Minha manisfestação foi fechar os olhos e pensar em todos esses casais que terminam um casamento por "diferenças irreconciliáveis". Todo mundo tem seus dias de diferenças irreconciliáveis.

GABRIEL, gustavo disse...

Não sei nem como casamento acaba.

Quanto mais assim, com essas palavras loucas.

Paullinha disse...

Até agora o melhor texto que já li sob esse tema das despedidas. Muito bom. Parabéns!!

Anônimo disse...

Lindo o texto, estou chorando...
Muito bem detalhado, adoro texto com detalhes!

Sara Carneiro disse...

Nossa Rutinha, os detalhes do texto me levaram até a tal casa. Eu vi a porta, a cadeira, as violetas. Tudo. É incrivel a tua habilidade com as palavras. Parabéns *-* ' e boa sorte no Bloínquês (yn)
Beijo no ombro.